novembro 11, 2009

COMPETIÇÃO> O caso Geisy: falso moralismo encobre competição feminina


Isabelle Anchieta[1]
O caso da estudante de turismo que foi verbalmente agredida por mais de 700 estudantes por usar um vestido curto na Universidade Bandeirantes de São Paulo (Uniban) é emblemático. Mas, para além das inquietantes respostas levantadas pela imprensa e por especialistas para explicar um fato tão estranho (na medida que ocorre em pleno Brasil do sec. XXI) há uma questão que passou inadvertida pelas discussões da sociedade. Qual? O fato de mulheres, colegas de Geisy na faculdade, terem iniciado as ofensas contra ela. As mulheres?! Sei que o tema é delicado, pois parece desviar a responsabilidade dos homens e da ideologia patriarcal e aparentar uma tentativa de culpabilizar as suas vítimas: as mulheres. Apesar de não menosprezar a presença da cultura machista no caso, gostaria de chamar a atenção a esse importante elemento pouco tratado na mídia: a competição entre as mulheres, o rancor entre elas.
A filósofa Simone de Beauvoir já denunciava em 1949 em seu livro “O segundo Sexo” que esse era um dos grandes empecilhos ao desenvolvimento feminino. Assim, ao invés de vitimá-las, Beauvoir culpava também as mulheres como co-responsáveis por sua subordinação. Em um trecho ela diz “os proletários dizem nós, os negros dizem nós, as mulheres – salvo em certos congressos que permanecem manifestações abstratas – não dizem nós. Isso porque não têm, como os proletários, uma solidariedade de interesses” (BEAUVOIR, 1949, p.13). Mas, não queremos, em contrapartida, reduzir a discussão entre encontrar as vítimas e vilões – o que seria um erro. Vale ampliar a questão e nos perguntar até que ponto as mulheres não estão sendo conduzidas por um sistema cultural, típico do capitalismo, que incentiva a competição? Especialmente a competição marcada pela busca de ser “a mais bela”?
Os concursos para escolher a próxima Top Model multiplicam-se; as revistas insistem em ranquear a mais sexy, a mais popular, a mais bem vestida; os programas de TV selecionam “feias” e “mal vestidas” para transformar sua estética e, supostamente, sua vida. A magreza, a juventude e a moda embalam e alimentam essa cultura social que promove uma competição destrutiva entre as mulheres. Uma competição emburrecedora na medida em que é alicerçada em um pilar extremamente limitador para a emancipação feminina: a beleza (enquanto sua única alternativa de ascensão social). Criou-se no país, assim como é o futebol para os meninos, a idéia de que a única via do feminino é a beleza – ora através de uma carreira como manequim, ora através de um marido afortunado. É por essa razão que a beleza alheia incomoda, ameaça, na medida em que retira da concorrente a sua suposta “única” alternativa de ter seu lugar ao sol.
Geisy foi julgada por um falso moralismo que traveste uma outra questão fundamental: a competição feminina. Basta retomar o caso através do relato de uma testemunha, colega de classe de Geisy, para comprovar tal hipótese. Paola Cristina Fernandes conta como tudo começou: “Cerca de 18 a 20 meninas invadiram o banheiro (onde estava Geisy). Pensei que fossem bater nela. Elas estavam incomodadas com o tamanho do vestido e uma delas chegou a oferecer um short para que Geisy cobrisse as pernas”. Mas, como explicar os outros quase 700 alunos que se aglomeraram, posteriormente, para agredir verbalmente a estudante? Freud explica (sem ironias). Há um texto que merece ser lido na íntegra chamado “Psicologia das massas e análise do eu” em que Freud retoma a reflexão de Le Bon para defender que os indivíduos são contagiados pelos fenômenos de aglomeração, de massa, e tendem a ter um comportamento agressivo e uma coragem que não teriam se estivessem a sós. Basta ver uma torcida de futebol ou uma gangue para explicar isso.
Portanto, insisto em defender que a compreensão do polêmico acontecimento, que repercutiu internacionalmente, não pode ser reduzida ao machismo e a moralidade. E, esta última, convenhamos, é uma explicação fácil e hipócrita em se tratando do Brasil, onde as alunas frequentam as aulas com roupas muito parecidas. O modo de vestir está inerente a cultura ocidental e especialmente brasileira de exibição do corpo, da competição estética, como tento destacar. Ser bela continua a ser a maior obrigação feminina, patrocinada agora pelas campanhas publicitárias, pela moda e pelo consumo. Uma busca pelo corpo impecável, pela bolsa invejável, pelo cabelo que brilha mais do que o das outras. Um sistema que cria, via beleza, mecanismos de controle e competição extremamente limitadores da experiência humana da mulher enquanto ser humano capaz de múltiplas experiências e transcendências. Não que eu faça aqui um discurso anticapitalista, pois foi ele o único sistema que avançou efetivamente na ruptura do feminino com suas antigas coerções (religiosas e patriarcais) através dos valores laicos e pela consolidação do imaginário social igualitário-democrático que preza pela cultura da meritocracia (ou seja, se você for bom, não importa o sexo, a cor e a etnia, você pode ascender socialmente). Claro, que não chegamos a um nível de igualdade minimamente aceitável, segundo dados da Revista Exame (2009), das 100 maiores empresas no país nenhuma possui mulheres na presidência. Mas, é fato também que avançamos, tanto que a mídia cumpriu, no caso de Geisy um importante papel ao posicionar-se contra a violência sofrida pela estudante – independente do encantamento ou não de Geisy por sua visibilidade midiática. Isso não desqualifica o ato e a violência, isso não a desqualifica, como querem alguns poucos, na medida em que o acontecimento transcende uma discussão particularizada e revela um os atrasos na emancipação feminina no Brasil.
Desejo, por fim, fazer com que essa reflexão não seja apenas um “puxão de orelha” para as mulheres, mas um chamado a sua consciência. Essa delicada e difícil auto-reflexão que nos leva a desvendar tanto os nossos monstros e limites, quanto a nossa cumplicidade com o sistema cultural alienante que nosso momento histórico nos condiciona. Pois, não podemos nos furtar de não considerar que somos co-responsáveis por alimentar esse sistema, e que podemos, sempre, não compactuar com ele. Não somos seres determinados, alienados, dada a nossa capacidade humana, sempre renovada, de desviar o olhar, de não se tornar objeto, de nos emancipar e de recriar a nossa cultura. Pois, essa crueldade feminina reverte-se mais cedo ou mais tarde contra cada uma de nós. Termino, a nossa reflexão, com uma pequena historinha de Brecht:
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Ninguém se importou comigo.
(Bertolt Brecht, 1959)


[1] Isabelle Anchieta é jornalista e mestre pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em pesquisas sobre a mulher, suas imagens e imaginários, Isabelle desenvolveu a tese conhecida como “a quarta-mulher”. Recebeu prêmio nacional de Jornalismo pelo "Rumos Itaú Cultural" 2007/2008 como professora universitária. Tem dois livros publicados e artigos científicos internacionais e nacionais publicados em veículos como: Revista Mente e Cérebro (da Scientific American), Observatório da Imprensa; Comunique-se; jornal Estado de Minas; jornal Hoje em Dia entre outros. Como jornalista foi apresentadora e editora-chefe do Jornal da Rede Globo Minas e repórter de documentários pela Rede Minas.