julho 01, 2007

"Diga-me o que tu lês e te direi quem és"

"Digas o que tu lês e te direi quem és"


Não sei se a paráfrase acima vale para todos, (já que vivemos em um país de poucos leitores), mas se posso dar-me ao direito de revelar um pouco sobre mim, posso dizer, sim, os livros foram fundamentais na minha história (e espero que na sua tb, meu leitor). E, por mais que tenhamos lido as mesmas coisas, as mesmas obras, o modo de apreendê-las, o sentido que tomam em nossas vidas são diversos. Eis, aí, a beleza do conhecimento e os ganhos que damos aos "nossos autores". Somos ao mesmo tempo personagens e autores. Nos identificamos e construímos a nossa história...
Por isso, aqui vou tentar te contar um pouco de quem sou eu através dos autores que li.
Entre eles o primeiro que recordo de imediato é o escritor argelino Albert Camus. Com ele aprendi que na absurdidade da vida está contida sua beleza e sua força. E, que a grande questão filosófica, ao fim de todas as coisas é uma: o suicídio. Ou "não" se vive ou se vive "mais". E, que não há vida sem sofrimento, mas é nele que está a semente de uma grande vida, repleta desse “mais” . Aponta que está na própria repetição a saída para uma vida mais plena. Isso fica evidente em duas obras: "O Mito de Sísifo" e "O Estrangeiro".
Na verdade, sempre fui fascinada pela compreensão de que as coisas não devem ser separadas de forma maniqueísta. O que acredito ter me aproximado tanto do filósofo alemão Friedrich Nieztsche. E, é preciso dizer: a filosofia de Nietszche é libertadora. Ela afirma o homem no que possui de mais degradante e sublime. Incondicional. Uma filosofia profundamente amorosa com tudo o que é humano, contraditório, trágico, insubordinado, instintivo e sensorial na experiência. Compreende o humano, o demasiadamente humano e encontra mesmo no peso, a leveza da vida. Na doença, defendeu a grande saúde. E declara, ante a absurdidade de sua história: “A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado” (NIETZSCHE, p.51, 1995 ECCE). Ante o pior, não viu somente a face de sua cura, aquilo que a tornaria ainda mais intensa e prazerosa. Cada momento de saúde só poderia ser assim compreendido por ter sido antecedido pelos piores momentos da doença. E, como ninguém acreditou que esse homem, não idealizado, que estaria diante de suas limitações e perplexo diante das falsas crenças ideológicas e religiosas, poderia, enfim, afirmar a vida como um espírito livre. Um espírito capaz de contemplar a adversidade da vida e sua condição, amando-a incondicionalmente. E, declara: “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente (...). Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo _ mas amá-lo” (NIETZSCHE, p.51, 1995 ECCE).
Seria, portanto, um grande equívoco interpretar Nietzsche como um pessimista ou um niilista _ como o é, comum. Afirmar o contrário disso, também simplificaria a força de seu pensamento. Nietsche não era, nem otimista, muito menos um pessimista em relação à vida. Ao contrário, negava a divisão maniqueísta e redutora entre o “bem e do mal”, dizendo que “todas as coisas são batizadas na fonte da eternidade e além do bem e do mal; mas o bem e o mal mesmo não são mais do que sombras interpostas, úmidas aflições e nuvens passageiras” (NIETZSCHE p.131, 2006, AFZ). Influenciado, nesse aspecto, pelo pensamento do pré-sobcrático, Heráclito[1], Nietzsche acreditava que não existe uma oposição entre as coisas, mas que elas são uma só coisa. Assim, o mal gera o bem; o frio, o calor; a tristeza, a alegria. Os sentimentos, aparentemente contrários, são para Nietzsche solidários. Para ele, o homem que quiser experimentar a maior alegria terá de suportar a maior tristeza. Essa é a condição de uma vida que escolheu a intensidade.

No entanto, não poderia me esquecer também do lugar afetivo de grandes mulheres em minha trajetória. São elas: Cecília Meireles; Clarice Lispector; Pagú e Adélia Prado.

Cecília Meireles era o nome do Colégio que passei parte fundamental da infância. Nele, percebi que a poesia era necessária, sendo tratada como fundamento de toda educação. Era preciso ver na Matemática, na Biologia, na História e em todo o conhecimento sua magia poética. Uma educação regada de música e cabeçalhos de "para-casa" com poemas de Cecília Meireles- que ora se revezavam aos nossos (os alunos) contaminados por esse modo de ver e escrever as coisas. "Da" e "do" Cecília ficou a beleza e a poesia da vida. Como se ela própria fosse aquela Escola: uma bela casa dos anos 60. Branca, grande, com lustres de cristal e escada de ferro ( imponente e circular). Tudo belo, luminoso. Recordo-me do banheiro com uma linda banheira de pezinho azul, lá havia dois espelhos que refletiam a nossa imagem até o infinito. Sentava-me e olhava aquilo, por horas, com o espanto daquele efeito. De Cecília Meireles ficou o modo de olhar a vida, o que se traduz nesse poema:

A arte de ser feliz

"Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz. Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lopes de Vega. Às vezes um galo canta. Às vezes um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim" (Cecília Meireles)


Em Adélia Prado me reconheci em várias coisas: na mineiridade, em ser em parte divinopolitana (essa cidade do Divino que morei por 4 anos) e no amor por Nossa Senhora..
De Divinópolis recordo-me do barulho do trem me acordando, cortando a ponte do Rio Itapecerica, no bairro Niterói. Aquilo me enchia de alegria, pois me recordava o poema:

"Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento" (Adélia Prado, in Bagagem)

Da simplicidade de refinamento mineiro, recebi o “Ensinamento”:

"Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo: "Coitado, até essa hora no serviço pesado". Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente. Não me falou em amor. Essa palavra de luxo" (Adélia Prado)

De nossa Senhora, repete-se em muitos momentos difíceis a frase: “ò Virgem, volte à minha alma a alegria, também eu estendo a mão a esta esmola" - recordo agora a imagem de Nossa Senhora pintada no Santuário de Santo Antônio em Divinópolis (obra de Frei Humberto Randag).

Já de Clarice Lispector aprendi a lucidez de uma inteligência incomum. A clareza cortante de suas idéias. E nada me tocou mais do que uma carta que envia a si mesma, em que diz:

“Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso — nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades — depois disso fica-se um pouco um trapo”.


De Pagú (Patrícia Galvão) fica o exemplo de uma jornalista obstinada e apaixonada. Dizia-se " intoxicada de vida". Intensa, acreditava que “o aproveitamento da experiência se realiza espontaneamente, sem necessidade de dogmatização”. Uma vida repleta de lutas, convicções políticas e solidão. “Quando julgava estar irremediavelmente esmagada, voltava-me o movimento, o apetite, o sono tranqüilo. Vida. Muita vida”.
Lembro que a conheci atravez de um filme que assisti no cursinho por indicação de uma professora de Literatura que tinha por mim grande apreço e consideração (Barjute). Foram Barjute e Pagú que influenciaram, decisivamente, minha opção pelo Jornalismo. A estória de Pagú me embriagou de tal forma que tudo me atingia de maneira diferente depois de conhecê-la. Lembro que, após o filme, voltei a pé para casa. Era noite e recordo do meu estado de êxtase. Ficou uma imagem do caminho: o espanto com prédio JK e seu relógio que marcava 19:00h.
Pagú ensinou a paixão e a intensidade em todas as esferas, especialmente nas convicções sociais. Uma espécie de fé.
“A alegria da vida nova circulava em meu corpo. Eu era imensa. A pulsação me percorria. Uma exaltação anormal que só a religiosidade confere” (Pagú)


Mas, não poderia me esquecer de dois homens fundamentais: Guimarães Rosa e Manoel de Barros.

Guimarães Rosa emprestou seu olhar poético ao nosso entendimento de Minas Gerais. Cobriu de barulho de cachoeira e umidade verde o nosso pensamento. Sentenciava:

QUEM NASCE EM MINAS GERAIS TEM QUE GUARDAR, POR TODA A VIDA, UMA CONCEPCÇÃO MÁGICA DO UNIVERSO”

A Serra do Curral. Ela. Enorme, como são os nossos sonhos. Plena de ventos e azuis. E, por mais que a escalemos, não atingimos sua plenitude. A Serra apenas nos empresta uma promessa de grandeza. Dessa busca que é nossa e que não nos é dada.

SERRAS QUE VÃO SAINDO, PRA DESTAPAR OUTRAS SERRAS. TEM DE TODAS AS COISAS. VIVENDO, SE APRENDE, MAS O QUE SE APRENDE MAIS, É SÓ A FAZER OUTRAS MAIORES PERGUNTAS” (Guimarães Rosa)


Lembro-me quando refiz o caminho de Guimarães no sertão mineiro para realizar uma reportagem para a Rede Minas (o vídeo está disponível no blog na coluna à direita). Tudo se abriu em minha frente. Senti que havia uma cooperação quase divina para encontrar as pessoas e os lugares naqueles 3 dias. Entendi cada palavra do "Grande Sertão Veredas" percorrendo as estradas de terra e encontrando uma repetição de verdes e de trajetos do velho Chico. Há uma eternidade no sertão. Há um sentimento que todos temos. Pois “o sertão é o sozinho, o sertão é dentro da gente”.

NO SERTÃO FALA-SE A LÍNGUA DE GOETHE, DOSTOIEVSKI E FLAUBERT, PORQUE O SERTÃO É O TERRENO DA ETERNIDADE, DA SOLIDÃO. NO SERTÃO, O HOMEM É O EU QUE AINDA NÃO ENCONTROU UM TU”. (Guimarães Rosa)

Há nisso uma força poética que mistura-se a uma visão sublime da vida, nesse acreditar:

"COMO NÃO TEM DEUS? COM DEUS EXISTINDO, TUDO DÁ ESPERANÇA: SEMPRE UM MILAGRE É POSSÍVEL, O MUNDO SE RESOLVE. MAS, SE NÃO TEM DEUS, HÁ-DE A GENTE PRDIDOS NO VAI E VEM, E A VIDA É BURRA. É O ABERTO PERIGO DAS GRANDES E PEQUENAS HORAS, NÃO SE PODENDO FACILITAR- É TODOS CONTRA OS ACASOS. TENDO DEUS, É MENOS GRAVE SE DESCUIDAR UM POUQUINHO, POIS, NO FIM DÁ CERTO" . (Guimarães Rosa, 76)


Depois de Manuel de Barros me atentei para as miudezas: a vivacidade das gramas e suas formigas; das minhocas; dos peixes. Com ele aprendi “a escutar as cores dos passarinhos”; “a desenhar o cheiro das árvores”; a aprender que “não tem altura o silêncio das pedras” ou que “não se pode calcular a cor das horas” . E, que se deve “repetir, repetir até fazer diferente”.

Aprendi também que é a incompletude o que nos preenche de sentido:

“A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.
Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando
borboletas”.
Manoel de Barros

Acabo de me lembrar também de Gabriel García Márques em "100 anos de solidão". Há uma aridez e um espanto com sua narrativa. Me senti muito só, perto dessa eternidade a que tanto se refere Guimarães Rosa. Uma personagem, em especial, me tocou: Remédios. Sua descrição foi, dentre todos os romances que li, o mais encarnado sentido de uma mulher, a mais signmificativa maneira de ser. Revelou para mim uma mulher que no fundo desejava ser sem saber ainda a extensão das palavras na configuração do que somos e podemos vir a ser....

Uma mulher que possui uma lucidez penetrante que lhe permite ver além de qualquer formalismo, como se viesse de volta de vinte anos de guerra. Perturbadora. Contraditória; pois quanto mais domina os saberes do mundo, torna-se cada vez mais impermeável aos formalismos, mais indiferente à malícia e desconfiança, feliz num mundo próprio de realidades simples. E, quanto mais livre dos convencionalismos e obediente a sua espontaneidade, mais perturbadora fica sua beleza e mais provocante seu comportamento para os homens. Trata-os sem a menor malícia e acaba por transtorna-los com as suas inocentes complacências. Tudo nela pecava, por assim dizer, por um excesso de delicadeza”.


[1] Heráclito (539 – 469 a.C.) é considerado um filosofo pré-socrático ou cosmológico (no sentido de produzir uma filosofia que investiga a origem do mundo e as dinâmicas da Natureza). Heráclito era admirado por Nietzsche, ao contrário de Sócrates, por ser o primeiro um filósofo que não julgava moralmente os fenômenos. Heráclito defendia ainda que tudo nasce do seu contrário, afirmando que o fogo viraria água e vice-versa.